Dizem que os cachorros acabam se parecendo com os donos. No meu caso, sempre pensei que minha semelhança com a Cacau se resumisse à cor dos cabelos e a uma certa antipatia por estranhos em casa. Mas um dia desses descobri mais um fator em comum, e não é dos melhores.
Um pouco de contexto: Cacau é uma vira-lata de dez anos e meio, que vive conosco há quase os mesmos dez anos e meio. Quando ela tinha uns sete ou oito, resolvemos mudar de apartamento. Foi traumático pra todo mundo, mas ela foi a primeira a sentir: assim que as caixas começaram a se acumular na sala de estar, ela travou.
Começou com o tradicional modo bigorna, muito conhecido entre tutores de cães com alguma personalidade, que é quando o animal estaciona diante de alguma plantinha ou portão de que gosta muito e multiplica o próprio peso por dez, tornando-se repentinamente impasseável e incarregável.
Depois, ela desenvolveu o modo geleia, que consiste em se jogar no chão e amolecer, de forma que, ao puxar, você se veja arrastando uma forma inerte pela calçada e atraindo os olhares de vizinhos prontos para te denunciarem por maus tratos.
O curioso é que não é que ela não queira passear — ela não só quer, como esperneia todos os dias para que a gente tire os olhos do computador e vá tomar um pouco de sol. Porém, ela chega na calçada e logo se arrepende da ideia. Anda até o primeiro ou segundo prédio vizinho e se dá por satisfeita. Só anda de boa vontade se for para trás, de volta para o seu sofá.
Vocês devem estar aí pensando se eu também me jogo no chão ou se sei multiplicar meu peso pra ninguém me carregar, mas não é nada disso. Já vou chegar lá.
O que eu descobri, recentemente, foi uma técnica para driblar esse bloqueio e conseguir, enfim, dar a volta completa no quarteirão: o negócio é fingir pressa. Andar meio correndinho até a esquina, sem olhar para trás, sem cumprimentar ninguém, sem hesitar. Pode ser rude, mas é menos rude do que arrastar uma cachorra calçada acima pelo peitoral. Assim, na pressa, ela não tempo de perceber que a rua pode ser perigosa ou o que quer que ela pense que é, e se concentra apenas em saltitar uma patinha atrás da outra para não tropeçar.
E a mágica é que, se chegarmos até a esquina, o resto do quarteirão flui que nem água. O difícil é só começar, sabe? É só começar. E eu não sei vocês, mas foi nessa hora que eu me identifiquei mais do que gostaria.
Como a Cacau, hesitar é o meu maior perigo. Se eu parar pra pensar que tenho projetos demais, que talvez não dê conta, que não sei muito bem o que estou fazendo, que não sei como diabos eu deveria estar fazendo… aí eu viro bigorna, geleia, tudo menos um ser humano funcional.
Outro dia mesmo me vi paralisada, naquele mesmo sofá que a Cacau tanto venera, pensando na ironia da minha vida profissional: incapaz de focar num trabalho porque estava cheia de ideias para outro; mas incapaz de focar no outro porque minha consciência dizia que eu devia estar fazendo o primeiro. Ora, se eu simplesmente sentasse a bunda na cadeira, vestisse o fone de ouvido com lo-fi como estou fazendo agora e colocasse a mão na massa sem parar pra me lamentar, talvez já tivesse acabado os dois.
E foi assim que eu aprendi com a minha cachorra que, se você quer dar a volta inteira no quarteirão, só precisa mesmo é de uma coisa: andar até a esquina sem hesitar.
às vezes, ir fazendo sem pensar muito é tudo o que a gente precisa para conseguir fazer. se racionalizar demais, corre risco de travar.